Robos Artisticos

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                                      Leonel Moura brinca com o RAP, cujo visual lembra uma formiga. Segundo o artista, criador e criatura são capazes de produzir arte


Eu Robô

De perto, ele não lembra em nada uma criatura amea­çadora. Com jeitão de formiga, anda de um lado para o outro do papel, pára em um ponto, volta ao anterior, segue mais um pouquinho. De repente, baixa uma de suas seis canetas coloridas e dá continuidade ao desenho cheio de traços e tons vibrantes que, devagar, toma a forma de uma pintura à Jackson Pollock (1912-1956). A associação quase imediata com o expoente do expressionismo abstrato nos Estados Unidos rendeu ao simpático e aparentemente inocente robô o nome de RAP, Robotic Action Painter ("action painting" foi o nome pelo qual ficou conhecida a escola artística baseada na pintura de Pol­lock).


Destaque da mostra Emoção Art.ficial 4.0, em cartaz até 14 de setembro no Itaú Cultural, em São Paulo, o RAP é o orgulho do artista português Leonel Moura,pai da criatura — que observa à distância os gestos do filho e sorri, disposto a se surpreender. Moura assegura que seu robô não obedece a regras predeterminadas por ele. "Seu programa lhe dá plena autonomia para escolher por onde circular, o que fazer e quando parar", diz o artista. "Trata-se quase de um antiprograma." Ao fim de dois dias de trabalho, desde a abertura da exposição, o RAP decidiu que havia terminado uma obra. Poderia estar até hoje debruçado sobre a mesma peça ou ter-se dado por satisfeito logo nos primeiros minutos de criação. O desenho pronto — assinado por ele e por seu inventor — encontra-se pendurado em uma das paredes da instituição. É arte? Leonel Moura garante que sim e, ao bancar a resposta afirmativa, lança uma espécie de bomba no mundo das artes plásticas. A formiga elétrica, enfim, ameaça.
Macacos e Blade Runner

Concordar com o criador do robô-pintor significa acreditar que o conceito de arte sacramentado no início do século 20 já não tem mais tanto sentido assim. Desde 1913, quando Marcel Duchamp esboçou seus primeiros ready-made, ainda em Paris, essa definição liga-se à intenção do artista e sua idéia. Se Duchamp declarava que a roda de bicicleta era arte, a nós, espectadores, cabia aceitar. Por mais de cem anos, experimentamos uma era muito centrada no poder do autor sobre a obra. Com o RAP, Moura questiona esses valores: "Eu identifico arte com criatividade, com o fato de se fazer algo que não existia antes. Nenhum desenho ou pintura do meu robô se repete ou copia alguma coisa já vista. Ele não se submete a um conjunto de instruções. Ele cria", argumenta o artista português. "Quando eu anuncio a possibilidade da criatividade artificial, evidentemente proponho uma ruptura com a arte muito calcada no indivíduo. Confirmo que a arte pode nascer de um componente não-humano e sobre o qual eu, de fato, não tenho o menor controle." A tese de Moura é polêmica. Levada às últimas conseqüências, implica aceitar que tudo pode ser arte, bastando para isso que alguém — não só o próprio artista — assuma o julgamento. Ele provoca: "Estou disposto a reconhecer até que um chimpanzé faz arte. Minha única condição é a presença da criatividade".

Para entender bem a proposta de Leonel Moura, talvez seja mais fácil ver o universo em torno do RAP como uma espécie de escada. Segundo o artista português, o robô em si é sua obra de arte, afirmação endossada pelos críticos e pelo mercado. Em outro degrau, tem-se então o desenho ou a tela feitos pela máquina. De acordo com Moura, essas peças também são arte, realizadas em um segundo momento do processo, por sua própria criação. É esse o diagnóstico que gera controvérsias. A assinatura no papel grafada pelo robô, por exemplo, incomoda muita gente. Apesar de ser riscada pela máquina, deriva de comandos bem amarrados por Moura: o RAP não sabe escrever. Por outro lado, a hora em que ele termina o quadro e coloca o seu nome não está submetida a uma vontade humana: RAP decide quando seu trabalho pode, enfim, ser considerado pronto. Decide mesmo? Leonel Moura explica o seu "antiprograma" da seguinte forma: "Instalo no robô comandos binários como: 'Se tiver que usar uma caneta, escolha você se vai usar ou não. Se optar por usar uma, escolha você qual delas'. E assim por diante", diz ele, assegurando que faz sentido falar em um robô autônomo.

Para chegar ao RAP, que nasceu em 2006, e sacudir o paradigma em vigor desde Duchamp, Leonel Moura dedica-se à robótica há quase dez anos. Ele, que é representante da escola conceitual — em que a habilidade manual não tem mesmo muita relevância para determinar a qualidade de um artista —, sentiu que a arte contemporânea estava esgotada já na década de 1990. "Estagnamos nessa visão romantizada do autor, e a internet acabou de repente com essa possibilidade de endeusar tanto um artista. No universo dos sites, o que nos interessa é o conteúdo, não quem o colocou lá." Foi pensando assim que ele desenvolveu, com a ajuda de uma equipe de cientistas, o primeiro robô-pintor, apresentado em 2003, depois de dois anos de intensa pesquisa. O modelo inaugural lidava só com duas cores e, portanto, tinha de agir em equipe. Também não decidia o término de uma obra: em determinado momento, era desligado por Moura. Agora, em uma versão bem mais avançada, com nove olhos que funcionam como sensores, o RAP trabalha sozinho e se movimenta com mais autonomia. "Desse tipo são três irmãos. O que está agora em São Paulo e dois que moram em Nova York. Curiosamente, apesar de serem gêmeos, eles têm gênios bem diferentes. O RAP daqui usa muito mais a cor vermelha do que o irmão nova-iorquino", diverte-se Moura.

Em seu ateliê, em Lisboa, o artista vive cercado por vinte robôs-pintores. Confessa que, algumas vezes, se irrita com o comportamento da turma. Na galeria Leonel Moura Arte, inaugurada na capital portuguesa no ano passado, o artista vende as obras assinadas por eles. Sim, o aval do mercado as criaturas já conquistaram. Uma tela chega a custar US$ 10 mil, enquanto um desenho sai pela metade do preço. Leonel diz que especialistas em artes plásticas não distinguem as telas feitas por humanos das telas pintadas pelos formigões. "Com um detalhe curioso: em geral as mulheres preferem os quadros dos robôs." A maioria das peças produzidas pelo RAP aqui no Itaú Cultural, por exemplo, já tem os corredores da galeria portuguesa como primeiro destino. "As pessoas compram porque os quadros ficam realmente bonitos, mas também porque se encantam com a história dos robôs", explica Moura, que, ao contrário do que se pode imaginar, mantém as paredes de sua própria casa completamente nuas. "Acho que tem a ver com aquele ditado: casa de ferreiro, espeto de pau", brinca.
Impasse na arte

O artista paulistano Rodrigo Andrade, que estreou junto à chamada Geração 80, com pinturas em grandes dimensões e cheias de cor, está entre os que olham para o RAP com ressalvas. "Acho o robô simpático. Os desenhos são interessantes, curiosos, mas não consigo concordar inteiramente com a existência de uma máquina com liberdade de escolhas. O projeto é divertido, tem senso de humor, ironia, mas vejo o robô como um instrumento do Leo­nel Moura", diz o pintor, depois de uma visita à exposição. "Há um abuso nessa discussão sobre os limites da arte." Da mesma geração, porém dedicada às novas mídias, a também paulistana Giselle Beiguelman avalia a proposta de Moura com mais condescendência: "É uma sacada brilhante. Com o robô, ele nos alerta para essa fronteira cada vez mais híbrida entre o homem e a máquina. O que é o Projeto Genoma se não uma tradução do homem como um banco de dados?". Giselle, no entanto, se incomoda com o fato de o robô assinar a obra: "Quando o robô termina o desenho e se dirige para o canto do papel, ele volta a operar dentro das restrições impostas hoje à arte pela cultura cartesiana. O que importa é refletirmos sobre como homem, natureza e máquina se misturam nesses tempos recentes. A discussão sobre a arte do robô me parece irrelevante em relação à profundidade das perguntas que o robô em si nos coloca".

As questões levantadas pelo RAP precisam realmente de uma reflexão maior. Um dos organizadores da mostra Emoção Art.ficial 4.0, Marcos Cuzziol, concorda que entramos em um terreno ainda pouco maduro e muito deslumbrado com as possibilidades que se abriram com a chegada da internet e do computador. "O que quer dizer arte contemporânea? Para mim, o que reunimos agora é a verdadeira arte contemporânea. Mas esse conjunto não tem espaço nas coletivas dirigidas a criações em suportes mais tradicionais", analisa Cuzziol. O artista português Leonel Moura acrescenta: "Não me conformo com o termo 'arte e tecnologia' para designar o que faço. Um pincel é tecnologia. Enfim, os conceitos da nova arte estão muito vagos ainda". Isso sem falar na inexistência de um acervo dedicado a essa produção. O Itaú Cultural começou a montar um neste ano: "O armazenamento das obras desafia a instituição. Cada peça exige um cuidado específico", diz Eduar­do Saron, superintendente de atividades culturais da instituição e responsável pela coleção que, por enquanto, contabiliza 14 criações em novas mídias.

Um dos desenhos assinados pelo RAP aqui em São Paulo deve integrar o acervo em breve. Vai gerar polêmica. De novo, a criação do robô é arte? Diante de um cenário assim tão frágil, a imagem do pequeno robô ganha um sentido ainda maior. Eis um trabalho de formiga mesmo — uma formiga que, se romper com as barreiras da tradição, pode, quem sabe?, estrear uma outra era na arte.

Gisele Kato

 

Revista BRAVO! | Agosto/2008 

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